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SP ignora STF e nega transferência de mulheres trans para prisões femininas

“Isso aqui parece uma vagina?”, perguntou o enfermeiro de uma prisão masculina em São Paulo. Diante dele, estava uma detenta, nua da cintura para baixo. Ele fotografou os órgãos genitais dela. Levou as imagens para um superior, que disse: “Era o que eu queria. O pedido vai ser negado”.

O relato é de Tieta, mulher trans de 48 anos. Quando foi presa, em junho, disse que queria ir para uma prisão feminina. É um direito assegurado por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2021.

Mas o estado de São Paulo nega esse direito a mulheres trans que não fizeram cirurgia de redesignação sexual — que remove os órgãos genitais masculinos. É o caso de Tieta. Ela começou a tomar hormônios femininos na adolescência. Chegou a entrar na fila para fazer a cirurgia no início dos anos 2000, mas não foi chamada.

Sem a cirurgia, Tieta foi alocada em uma cela com 37 homens, onde foi estuprada seguidas vezes, diz ela. Em audiência com a Defensoria Pública de São Paulo, repetiu que queria ir para uma prisão feminina.

O pedido foi formalizado e Tieta foi convocada à enfermaria do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros. Não para uma consulta de saúde, mas para “verificação” dos seus órgãos genitais. Antes de ser mandada de volta à cela masculina, lembra Tieta, o superior do presídio deu um conselho: “Você logo vai arrumar um casamento [na prisão]”.

O que diz o STF sobre a prisão de mulheres trans

O direito foi estabelecido por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em 2021, no âmbito de uma ação que julgava se um preceito fundamental da constituição estava sendo violado — chamada de ADPF, que é de cumprimento obrigatório em todo o país.

“Outorgar às transexuais e travestis com identidade de gênero feminina o direito de opção por cumprir pena: (i) em estabelecimento prisional feminino; ou (ii) em estabelecimento prisional masculino, porém em área reservada, que garanta a sua segurança.” – Luís Roberto Barroso, ministro do STF, na ADPF 527

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) também determina que presas trans e travestis sejam questionadas se preferem unidade feminina. A determinação está em resolução de 2020, com diretrizes de atendimento à população LGBT na Justiça, de cumprimento obrigatório.

A maioria das mulheres trans prefere ficar em prisões masculinas, enquanto outras preferem unidades femininas, de acordo com pesquisa do governo federal citada na decisão de Barroso.

A decisão de Barroso será discutida em plenário virtual do STF em agosto.

O que está acontecendo em SP

A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo só aceita transferir para unidades femininas as mulheres trans que fizeram cirurgia de redesignação sexual. A decisão é baseada em uma resolução estadual de 2014.

“Deve ser prevalecido a identidade biológica dos reeducandos, ou seja, apenas as pessoas que passaram por procedimento cirúrgico de mudança de sexo poderão ser incluídas em estabelecimentos penais do sexo correspondente.” Marcello Streifinger, Secretário de Administração Penitenciária de São Paulo em ofício de 17 de fevereiro

O sistema carcerário paulista tem 448 mulheres trans presas.

Barroso decidiu que cirurgia ‘não é requisito’

Em 7 de julho, Barroso analisou um dos casos de São Paulo.

O ministro disse que a cirurgia “não é requisito” e determinou a transferência da presa trans para unidade . A decisão foi cumprida.

UOL questionou a Secretaria de Administração Penitenciária se, após a nova decisão de Barroso, o entendimento adotado em São Paulo vai mudar. A pergunta foi feita em 24 de julho. Até a publicação da reportagem, a pasta não respondeu.

“A cirurgia de transgenitalização não é requisito para reconhecer a condição de transexual. Nesse contexto, entendo que o simples fato de esta pessoa não ter passado pelo ato cirúrgico não é fundamento válido à negativa de transferência para unidade prisional feminina.” – Luís Roberto Barroso, ministro do STF, em decisão de 7 de julho

Identidade transexual independe de cirurgia

“Algumas pessoas transgêneras querem passar por cirurgias ou por terapia hormonal, outras não”, diz a resolução do CNJ de 2020.

A própria decisão do STF de 2021 cita uma nota técnica do Ministério da Justiça que diz que a transferência de mulheres trans para unidades femininas pode ocorrer “com ou sem cirurgia”.

“A negativa da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo em transferir mulheres trans presas para unidades femininas, quando esta for a vontade delas, implica em descumprimento da decisão proferida [pelo STF] na ADPF 527, em 2021.” – Camila Tourinho, coordenadora do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo

SP alegou risco de mulheres estuprarem detenta trans

Em fevereiro, Âmbar (*), mulher trans presa em São Paulo, condenada por injúria racial e desacato, pediu para ser transferida para uma unidade feminina. Assim como Tieta, Âmbar foi examinada nua na enfermaria do presídio para “verificação” de seus órgãos genitais.

Fonte: Uol (Foto: Oslaim Brito/TheNews2/Folhapres)

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