Multiparentalidade e a parentalidade socioafetiva
Dois pais e/ou duas mães no registro civil? Sim, é possível!
Só para falar o título desse texto parece que o cérebro e a língua dão um nó.
Fato. Contudo, esses nomes diferentes trazem em sua essência algo que é de
conhecimento de todos nós brasileiros, o afeto.
Não o afeto puro e simples, mas um afeto específico, que diz respeito às relações
de pais e mães de coração com seus enteados, digo, filhos de criação. Certamente você
conhece alguém que vive nessa situação, isso se não for o seu próprio caso.
Com a mudança no que era tido como conceito único de família há umas
décadas atrás, felizmente, hoje, família pode ser entendida num conceito amplamente
estendido. Nesse contexto, ocorre que passou a ser relativamente comum que crianças e
adolescentes passassem a ter um padrasto ou uma madrasta. Até aí tudo certo.
Acontece que em alguns casos a relação de afeto entre esse padrasto/madrasta
com o(a) enteado(a) é tão forte que, parece que os substantivos
padrasto/madrasta/enteado se fazem pequenos e não comportam todo o sentimento que
um tem pelo outro, pois se enxergam e se tratam numa verdadeira relação de pai/mãe e
filho.
Esse sentimento é tão intenso que, para eles, não faz sentido realmente não
serem legalmente pai/mãe e filho, pois o amor, o elo, o dever de cuidado e de
responsabilidade entre eles são tão genuínos, recíprocos e público que, o vínculo
biológico chega a ser absolutamente esquecido, pois o vínculo afetivo ultrapassou essa
barreira. Pois bem, diante de toda essa narrativa, temos constituído o que chamamos de
parentalidade socioafetiva. Mas, e aí?
Bom, diante dos casos concretos que se apresentavam ao judiciário, o direito de
família precisou se posicionar e se adequar a essa nova realidade que ocorre em muitas
das famílias brasileiras e, assim o fez, no ano de 2016, quando um julgamento do
Supremo Tribunal Federal permitiu que um filho pudesse fazer constar em seu registro
de nascimento o nome dos seus dois pais, o biológico e o afetivo, dando assim o
chamado instituto da multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de se ter dois pais ou
duas mães – ou até mesmo dois pais e duas mães – no registro de nascimento.
Logo, da parentalidade socioafetiva, ou seja, configurado e comprovada a
relação de afeto recíproco entre pai/mãe e filho de coração, caso as partes desejem, pode
decorrer a multiparentalidade.
Para tanto, como dito, a vontade deve ser de ambas as partes e a parentalidade
socioafetiva realmente deve existir, uma vez que será averiguada pelo judiciário ou pelo
cartório de registro civil, sendo algo de extrema seriedade e responsabilidade para
ambas as partes, pois dessa decisão irão decorrer inúmeros direitos e deveres para
ambos, passando as partes a serem realmente pai/mãe e filhos para todos os efeitos.
Logo, deve ser uma decisão cuidadosamente pensada e analisada, não apenas
com a emoção e o sentimento, mas também com a razão, pois refletirá na esfera de
deveres e direitos patrimoniais e extrapatrimoniais. Para tanto, é imprescindível
consultar um advogado especialista a fim de esclarecer todos os reflexos dessa decisão e
te orientar quanto ao procedimento para que haja plena segurança jurídica.
Esclarecida todas as dúvidas e na certeza do desejo de formalizar esse elo
afetivo, as partes poderão fazê-lo de três formas: direto no cartório de registro civil;
através de ação judicial de forma consensual; ou, através de ação judicial de forma
litigiosa. Vejamos:
Direto no cartório de registro civil: essa possibilidade poderá ser escolhida pelas
partes quando o filho a ser reconhecido for maior de doze anos e os pais biológicos
estiverem de acordo com a formalização, ou seja, com a inclusão do pai ou mãe afetivo
na certidão de nascimento. Lembrando que, mesmo no cartório, o vínculo afetivo deverá
ser comprovado ao tabelião registrador que tem total autonomia para averiguar a
situação e até mesmo recusar a feitura da alteração caso perceba que há indícios de
fraude ou não reconheça ali a configuração da parentalidade socioafetiva.
Judicialmente de forma consensual: caso a criança tenha menos de doze anos,
ainda que todas as partes estejam de acordo, será necessário fazer o pedido
judicialmente, a fim de que haja um maior cuidado por se tratar de criança que pode ser
levada a erro. Dessa forma, haverá todo um estudo social de maneira a averiguar se ali
realmente existe uma relação verdadeira de afeto familiar e demais requisitos. Contudo,
restando comprovada a afetividade recíproca e genuína, o consentimento dos pais
biológicos encurta o caminho e agiliza o processo.
Judicialmente de forma litigiosa: quando dizemos de forma litigiosa, nos
referimos a conflito. Nesse caso, o conflito se dará em decorrência da negativa do
consentimento de um dos pais biológicos (pai ou mãe) que, não quer que seu filho tenha
outro pai ou outra mãe em seu registro civil. Diante de tal impasse, caberá ao juiz
averiguar o caso concreto e decidir se concederá ou não a retificação (alteração) do
registro civil a fim de acrescer o nome da mãe ou do pai afetivo.
Basicamente, é isso. O instituto em si tem o objetivo de formalizar a relação
entre pais e filhos que não tem a mesma genética, mas, tem o mais importante, o amor
verdadeiro de pai, mãe e filho, no intuito de registrar formalmente o que há muito já
ouvimos e provavelmente já dissemos: pai e mãe é quem cria.
A ressalva que se faz novamente é apenas no cuidado para a tomada da decisão,
pois se trata de algo irrevogável e, como dito, dará ao filho e aos pais afetivos o direito e
dever de pagar/receber pensão alimentícia – caso necessário – direito à herança, e tudo
mais que se refira a direitos e deveres entre pais e filhos, não havendo qualquer
distinção entre os biológicos e afetivos.
Ressalto aqui a necessidade de buscar esclarecimento frente ao caso concreto,
pois isso não deve ser uma obrigação, uma vez que nem todo padrasto ou madrasta
necessariamente será um pai ou mãe afetivo, e está tudo certo. O importante é que
sempre haja o cuidado e o respeito mútuo.
Com: Keity Nogueira de Sales Mello – OAB/SP 322.467. Advogada especialista em Direito de
Família e Sucessões.